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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

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sexta-feira, 19 de março de 2010

Estratela de Quina

Joaquina nasceu sem lenço, sem documento, sem sobrenome, sem nada. A única coisa que tinha com fartura não era coisa: eram irmãos. Sete, todos homens. Nasceu numa família pobre de dar dó. Se naquela época houvesse Bolsa-Família, seu Joaquim, seu pai, e dona Marina, sua mãe, mereceriam umas dez.

Mas que nada. Ainda não tinham inventado o Lula, e a família só ia empobrecendo, a terra da roça onde nasceram só ia secando. E a menina, que era até bonita, depois de engordar a primeira arroba e meia, começou a perder peso. E perdeu com força: desnutrição, desidratação, desmiolação – diziam que estava ficando doida por tanta desventura, mesmo antes de ser normal.

Com o tempo, Joaquina, que nunca fora registrada (seu pai nem sabia o que era cartório), perdeu até no nome. Por razões que a razão não desconhece, passou a ser chama de Quina. Isso foi ali pelos seus sete ou oito anos, quando foi pra escola, andando uma légua pra ir e uma légua pra voltar.

Escritor sem assunto tem dessas coisas: escreve o óbvio. Se era uma légua pra ir, teria que ser uma légua pra voltar. É óbvio, também, que Quina começou a perder mais peso ainda, andando esse tantão todo dia.

Num dos primeiros dias de aula, naqueles rincões de Minas, bandeando pra Capetinga, a professora lembrou: ainda faltavam alguns documentos para confirmar a matrícula da pobre-coitada. E perguntou o nome dela todo:

– Quina.

– Isso não é nome todo. Eu quero completo.

– O que é compreto?

Seguiu-se uma longa e complicada explicação, com a qual não vamos perder tempo.

– Juaquina.

– Joaquina de quê?

– O que é “de quê”?

– Os seus outros nomes ou sobrenomes.

Aí vocês já viram. Abafa o caso!, como diria a Luciana Gimenez.

Depois de muito esforço didático:

– Meu pai num me registrô.

– Então você simplesmente não existe. – Disse a professora.

– Pra quem num ixiste, ela tá té bem, né, Nerso? – Provocou um pentelho.

– Se eu num ixisto, ele num pricisa me registrá. – Concluiu Quina, com uma certa lógica.

Na volta pra casa, porém, após conversar com uma colega, Maria das Dores Ferreira dos Santos Silva, a menina achou superchique esse tantão de nomes. E ficou doida pra existir.

Chegando em casa, logo Quina dirigiu-se ao pai:

– Papai, me registra!?

– Rê o quê?

Quina explicou, mal, mal, o que mal aprendera. E Joaquim atendeu aos anseios da candidata à existência:

– Amanhã vâmu na cidade.

Chegando à cidade, Joaquim sentia-se, como sempre, um peixe fora d’água:

– Onde é o tar de cartório?

– De anotá casa ou de anotá nome de fio?

– De anotá nome de fia, minina muié.

– Im frente do açorgue do Bento, duas rua daqui pra cima.

Chegando ao cartório, pela primeira vez Joaquim pega uma senha na vida. Número oito, o número suposto de seus bichos de pé e o número preciso de seus filhos. Os nascidos até aquela época. Logo foi chamado:

– Vai registrar quem?

– Minha fia aqui cumigo.

– Por que demorou tantos anos? Normalmente a gente registra nos primeiros dias.

– Eu nem sabia desse trem, meu sinhô. Mas agora, lá na escola, o pessoar tá pono titica na cabeça dela, amiaçano ela de num ixisti.

– Qual é o nome?

– Ês trata ela de Quina.

– Só isso?

– É. E ela apriceia ês tratá ela assim.

Dentro de quinze minutos, vem a certidão, com o nome da garotinha: Estratela de Quina.

– Confira, por favor, porque não pode ser feita alteração, a não ser na mesma hora.

Joaquim não sabia ler. Joaquina tampouco. O homem pediu a um capiau sentado ao lado pra conferir:

– Cumpádi, esse trem aqui tá certo?

– É isso messs. A foia é dessa cor, com um tantão de letra e assinatura do dotô.

O pobre Joaquim voltou, feliz da vida, com Estratela, que passou a existir no mesmo momento em que Joaquina, a quem fora prometida a existência, desapareceu.

No dia seguinte, a professora soube da novidade:

– Então agora você existe, Quina!

– É, mais trocaro meu nome. Óia a certidão.

– Trocaram nada. É porque você não sabia que Quina era sobrenome.

– É, mais achei que num valeu a pena ficá com um nome tão ordinário assim só pra ixisti. Estratela é feio dimais. Onde será que meu pai arrumô isso?

– Lá na cidade. – Disse Jãozinho, que não tinha nada a ver com a conversa.

E continuou o guri:

– Lá na cidade tem um tar de iscrevente que istraçaia com o nome de meio mundo aqui nas redondeza. O que ele ôrvi ele taca na mardita da certidão. Nem pede pra ripiti. Eu, purexempro, chamo Jão. Jão, fessora. Sem o "O"...

– Olha o palavreado, Jãozinho! Respeito!

– Respeito nada! Ês num respeitô eu, que chamo Uóxitu. – Gritou outro. – Estratela tá bão dimais da conta.

– E eu, Ermivardo. – Sapecou o mais novo da sala.

– Mas aí já é erro do pai, né? – Brincou a professora.

– Do pai nada, fessora. Os colega fala que minha mãe é que andô pulano a cerca...

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