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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Cidade dos ósculos e dos amplexos

Em Recanto da Felicidade, divisa de Minas Gerais com Santa Catarina, ainda se ouvem os passáros, em pleno centro da cidade. Ainda se diz bom-dia. Com direito a carinha boa e, no inverno, com aquele bafinho de fumaça.

Naquela cidade, o celular foi proibido por uma lei – flagrantemente inconstitucional e aberrantemente supérflua – depois da constatação de haver somente doze aparelhos habilitados, cujos proprietários não os utilizavam. E, principalmente, diante da possibilidade cada vez mais concreta de que o artefato, considerado brega por 98% da população, possa fazer mal à saúde.

A cidade é maluca, a ponto de não existirem muros separando as casas umas das outras nem da rua. O máximo que se admite é uma cerca de plantas sem espinhos, de tal maneira que os policiais florestais não se machuquem ao invadir os lotes em busca de animais perigosos. Já houve setenta e dois desses casos na história – envolvendo animais –, contra apenas dois de furtos e roubos.

O único caso de corrupção na política verificado em Recanto da Felicidade, aliás, foi descoberto por causa da construção de muros. Há cerca de vinte anos, um prefeito, contrariando a tradição da cidade, quis ter uma casa muito maior e muito mais bonita que a de seus conterrâneos. Como não houvesse lei proibindo os muros, começou a levantá-los, à medida que a mansão ia ficando pronta e iam chegando os carros na garagem: um, dois, três, quatro. O homem não tinha noção.

A população não quis nem saber. Quando ficou provado que aquele casarão e aqueles carrões não poderiam ser pagos por quem entrou na política com uma mão na frente e outra atrás e cuja remuneração era de dez salários mínimos, os cidadãos simplesmente pararam de dar bom-dia ao infeliz. Pouco tempo depois, mesmo assim, ele candidatou-se a deputado estadual. Teve exatos seis votos, gastando metade de sua fortuna na campanha. Suicidou-se pouco depois. Sua casa hoje é um espaço cultural chamado “Palácio do Povo”. Enfim, um lugar no qual o socialismo deu certo!

Em Recanto da Felicidade ainda se escrevem cartas. Toda sexta e todo sábado à noite os músicos vão para as praças – há inúmeras – e os casais cantam enquanto namoram. Ou namoram enquanto cantam. Quase todas as apresentações musicais terminam com “João e Maria”, de Chico Buarque, porém sem aquela última parte.

Não há escolas nem hospitais particulares. Quase todos os comerciantes e empresários da cidade doam parte de seus lucros às instituições públicas de ensino e saúde. Os professores e médicos, por intermédio de uma lei – também flagrantemente inconstitucional –, foram beneficiados com doações de casas simples, mas nos lugares mais charmosos da municipalidade. Do alto veem onde estão todas as pessoas a quem devem retribuir com trabalho e afeto.

Naquela cidade totalmente estranha, os traficantes de drogas não são perseguidos. Acabam virando, eles próprios, viciados, pelo ócio advindo da falta de freguesia.

Para atingir o auge dessa coleção de “nunca se viu”, a única igreja local não tem grife de nenhuma religião. É toda branca, toda paz, toda acolhimento. Não tem vitrais coloridos nem arquitetura diferente. Nem quadros, nem atrativos visuais, a não ser a inscrição: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei”. É bastante frequentada, principalmente pela população das localidades vizinhas de maior porte.

Em Recanto da Felicidade, todo dia em que nasce uma criança tem festa na praça mais próxima. Todo dia em que alguém morre chora-se ao som de “Sentinela”. Todo dia em que alguém chega uma família é sorteada para oferecer o café de boas-vindas. (Quem quiser pode tirar o nome da cumbuca, mas isso quase não acontece.) Todo dia que alguém vai embora a cidade fica menos bonita. Todo mundo que faz um poema manda publicar no jornal. Lá o tempo passa devagar, a ponto de ter sido aventada, várias vezes, a possibilidade de uma cerca preguiça dos relógios recantados.

Ah! Voltando ao jornal, mais uma curiosidade: toda vez que há uma batida de carro, é manchete de O Mês no Recanto. Acontecem esses acidentes, mais ou menos, duas vezes por ano. E quem paga os prejuízos é um seguro coletivo, custeado pela pequena parcela da população proprietária de automóveis. Os jardins são considerados bens muito mais desejáveis que os veículos. Até porque recebem multa todos os motoristas que buzinam na cidade sem uma justificativa convincente por escrito. A não ser que seja para cumprimentar.

Os último registros são que Recanto da Felicidade é a cidade dos encontros, dos sorrisos, dos ósculos e dos amplexos. Lugar de crianças inocentes e sem videogame. Lugar de quintais e pomares. Terra dos violinos, dos violeiros, dos saxofonistas e dos pianos. A profissão menos atraente é a de juiz de direito, por revestir-se, lá, de um tédio absoluto. A mais prestigiada é a de artista, em suas várias acepções. Supõem os doutos ser pelo fato de muitos não darem conta de tanta beleza sem repartir. Mas talvez seja porque, ainda que o encanto um dia murche, o praticante desse ofício seja dos poucos a ousar reinventá-lo.

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