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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Minha casa


“... Mas quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem; outros, que só existem diante das minhas janelas; e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar para poder vê-las assim.” (Cecília Meireles)

Eu quisera escrever sobre o que vejo de dentro pra fora da janela de minha casa, como na música de Lô Borges e Fernando Brant; ou como no belíssimo texto de Cecília Meireles. Mas, não tendo esse talento nem essa paisagem, volto-me para dentro, de mim e de onde moro.

Um dia um cogumelo roubou minha outra casa. Eu não sabia que o veneno de alguns cogumelos chegaria a esse ponto. A Justiça disse que a casa era dele, e eu não esperneei muito, por haver justiça maior, curiosamente com letra minúscula.

Afinal, bem menos que seres humanos, os cogumelos (expressão retirada de O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry), segundo meu cansado dicionário, são “plantas critógamas parasitas”. Não me perguntem o que quer dizer a palavra do meio, avermelhada pelo computador e ignorada pelo próprio pai-dos-burros que a trouxe, inclusive para este texto.

Não me atrevo a escrever sobre cogumelos, até porque poderia ser impreciso. O interessante é a casa que eu ganhei depois que um cogumelo levou a outra. Bastante sonhada, pois cogumelos não conseguem roubar esperança, é bem maior que a anterior e cabe a mim, comporta minhas três mulheres, uma cachorrinha, dezenas de brinquedos, jogos e bugigangas, meus livros, meus discos e até minha desorganização.

Além disso, há espaço para receber os amigos, para ler, para aprender, para escrever, para rir, ouvir música, namorar Idalina, curtir as crianças, para falar com Deus e para Ele falar comigo. Se bem que, em relação a esse relacionamento com o construtor de minha casa eterna, eu ainda devo evoluir muito.

Para ser a casa ideal, só faltou estar ao lado de um aeroporto. Eu ficaria, apesar do barulho, de vez em quando na janela esperando aviões e ouvindo a voz chorosa e romântica de Vander Lee.

Por falar em audição, há dias – embora raros – em que ouço tiros ao longe. Ou são de policiais ou são de cogumelos. No referendo de outubro de 2005, decidimos que os tiros devem fazer parte de nossa vida, o que quer dizer que as regiões adjacentes à minha casa infelizmente não destoam do projeto brasileiro de sociedade.

Há dias, bem mais numerosos, em que ouço eu-te-amos dentro de minha casa. Não sei se os gramáticos admitem eu inventar esse substantivo composto, mas os eu-te-amos existem. Isso é bem mais forte que os tiros eventuais e distantes.

Minha casa, apesar de me caber, é simples, quase simplória, sem requintes, sem qualquer luxo, e as duas decoradoras que tiram as coisas do lugar a toda hora só conseguiram decorar, até aqui, algumas músicas, inclusive o Hino do Cruzeiro, com que, num momento de fraqueza, lhes inaugurei o repertório.

Muitas vezes falo em me mudar e ir para mais perto do trabalho. Falo também em mudar de carro, em mudar de som, em mudar de telefone. Sou uma metamorfose ambulante, embora isso não seja nada original. Mas a casa continua a mesma dos últimos anos, felizmente.

Por falar em trabalho, o trabalho ideal é este que tece linhas caseiras. Não traz qualquer efeito colateral.

Outro ofício muito bom – e há indícios de que Giovanna possa abraçá-lo – é projetar casas em que as pessoas sejam felizes. A minha, quanto a isso, não deixa nada a desejar.

(2007)

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