Pesquisar neste blog

Quem sou eu

Minha foto
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

Tradução/Translation

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O monstro da indiferença






“Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.” (Otto Lara Resende)

Assim como vários cidadãos muito pobres que passam pelo meu passeio (passeio público, aliás), um homem apareceu, numa tarde de sábado, acompanhado de dezenas de latinhas vazias de refrigerante e cerveja. Era, talvez, a única féria diária desse patrício de aparentes trinta e cinco anos. E com supostos milhares de quilômetros rodados atrás do lixo farto que a pequena burguesia produz e com o qual, se não fossem os catadores, destruiríamos o planeta. O homem pediu-me um leite para suas crianças. Parecia digno de dúzia de litros. Mas busquei-lhe apenas uma quase-esmola: duas caixinhas.

Ele não tinha aparência de revolta nem o manjado papo de aviar uma receita nem cheiro de bebida. Tinha, sim, expectativa de um grande domingo pela frente, do lado de fora de um estádio alucinado: Atlético x Flamengo. Enquanto as duas torcidas pensavam em ser campeãs, ele só queria sobreviver. E louvava a Deus por essa oportunidade. Lá dentro, uma multidão ajudava a sustentar regiamente vinte e dois indivíduos cuja grande contribuição para a humanidade é chutar uma bola. Eventualmente, com alguma habilidade. E a retribuição dessas estrelas de décima grandeza – às vezes tão incultas quanto meu visitante – são dezenas (ou até centenas) de milhares de latinhas cheias por mês. Latinhas que, vazias, já mudariam a sorte de meu semelhante, que ficou de fora do Mineirão e até do hall de meu apartamento.

Ora, mas para quê sentimentalismos? Um jogador de futebol mediano ou mesmo horroroso de um grande time merece ganhar por dia mais latinhas cheias que um transeunte consegue amealhar (vazias) por mês. Achamos isso normal. Achamos normal até alguém catar alimentos apodrecidos em nosso lixo.

Eu deveria ter perguntado pelo menos o nome do homem dos recicláveis, mas em mim ameaça instalar-se também o monstro da indiferença. Dei-lhe apenas a atenção mínima, por trás da grade, é claro. Ele não era uma ameaça, mas eu não o considerava um igual, como Deus e a Constituição do meu país consideram. Torci muito por ele no dia do jogo. Porém, menos do que torço pelo Cruzeiro.

Vivo num país que não é de todos. Portanto, aqui o monstro da indiferença deita e rola. Todos são iguais, mas muitos consideram-se "mais iguais" que os outros. Com desculpas-perguntas do tipo: “por que ele não estudou?”; “por que ele não ralou como eu?”. Será que não ralou mais. Ou o nosso ralo é mais cortante?

Pra resumir, ele só levou o equivalente a três ou quatro reais e um começo tênue de solidariedade. E ficou muito agradecido. O leite alimentará suas crianças e seus modestíssimos sonhos por uns dois ou três dias. As poucas latas do sábado e as centenas ou milhares do domingo irão para a reciclagem.

Quanto a mim, também preciso de uma, para sofrer menos com um gol idiota do que com a sorte de um ser humano. Que o homem das latinhas tenha catado também, para reciclagem, meu coração de pedra naquela tarde. Esse coração egoísta (e vagabundo, como cantava Caetano) quer guardar o mundo em mim – e os outros bem longe do meu mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário