Pesquisar neste blog

Quem sou eu

Minha foto
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

Tradução/Translation

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Santos


Numa das ruas principais de um bairro modesto, dos mais antigos e tradicionais de Belo Horizonte, ele corta cabelo há quase meio século. Faz questão de lembrar o dia em que começou naquele ponto: vinte e oito de julho de mil novecentos e sessenta e dois. Nunca mais saiu dali.

Mineiro de Carangola, esteve muito tempo em terras capixabas. Aos 19 anos, em área rural próxima a Cachoeiro do Itapemirim, sofreu um acidente que quase lhe custou a vida: um grande pedaço de pau caiu em sua cabeça, tirando-lhe bastante sangue e a consciência. Houve sequelas neurológicas, visíveis pelos lábios tortos, que pensei pudessem ter sido resultado de um AVC mais recente.

Aos setenta e tantos anos, os óculos e a vista estão cansados, mas a voz, mesmo sem muito volume, é normal. Santos fala da cidade que o acolheu, relata um pouco da transformação da metrópole hoje bem grande, violenta e desordenada. Era muito diferente no tempo em que ele chegou aqui e eu era somente um projeto. Não acredita em amizade sincera, leal, desinteressada. Crê, por outro lado, no valor e no prazer do trabalho: “é a melhor coisa que existe”.

Santos corta, com traquejo, com cuidado, com minúcia, os poucos e rebeldes cabelos que me restam. Falo um pouco, ouço muito: ele é memória viva do lugar que tanto amo. Gosto de papos que exalam história, filosofia popular, sabedoria, crenças e cismas. Santos cobra pouco pelo serviço. O salão é simplório, quase abandonado, como parece ser Santos, apenas um filho, a esposa muito doente e os amigos... Ora, os verdadeiros amigos para ele não existem.

Faz questão, no entanto, de ressaltar que a gente do bairro e do entorno é muito boa e que a bandidagem vem de longe. Não tem grandes queixas. Parece não ter grandes alegrias.

Conta Santos que, há pouco tempo, passou por cirurgia delicada, de alto risco, em que suas chances de sobreviver seriam de seis por cento. Foi preciso: seis por cento. Venceu os noventa e quatro que lhe eram contrários e está aí, trabalhando honestamente já no ocaso da vida, enquanto muitos há que, ainda bem mais jovens, querem somente polpudas benesses do erário.

Acho ótimo cortar cabelo. Aliás, quem corta é o Santos. Alguém nos toca, alguém nos fala e somos obrigados a ficar quietos e receptivos por vários minutos, sem buzina, sem pressa no carro, sem controle remoto, sem computador e às vezes até torcendo para demorar, para sofrimento do semelhante na fila no salão.

Afora isso, no meu caso ainda há outros prazeres, além de conhecer pessoas e ouvir suas histórias: saber que ainda tenho um pouquinho de cabelo e sensibilidade e que tudo pode virar um texto. Inclusive os bons papos do Santos (a quem perdoo pelo paralama de fusca feito acima de minhas orelhas) e do Zé Bagunça (cujos tradicional salão e carros impecáveis dão gosto ao moradores do bairro Pompeia e adjacências), outra grande figura que há décadas faz a cabeça de muita gente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário