Pesquisar neste blog

Quem sou eu

Minha foto
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

Tradução/Translation

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Um texto jogado no chão


(ESTE É PARA AS CRIANÇAS QUE GOSTAM DE LER – E PARA AS PROFESSORAS QUE GOSTARIAM QUE ELAS GOSTASSEM. POR QUE NÃO USAMOS O COMPUTADOR TAMBÉM PRA ISSO?)

Um dia desses sonhei que um papel no chão, jogado num canto, amassado, quase um lixo, estava chorando. Chorando muito.

Papéis não choram, eu sei, mas no meu sonho esse papelzinho estava muito sofrido. E chorava.

Já que ele chorava, pensei também que pudesse falar. E como o meu sonho era mesmo muito doido, perguntei:

– Por que você chora, papel desiludido?

O TEXTO – Não sou papel somente, sou um texto. O autor teve um trabalhão enorme para me escrever. Depois, mandou para a revisão, dali para a editora, de lá para a gráfica, de lá para a distribuidora, de lá para a livraria, de lá para a casa de alguém. Já rodei muito por aí e sou fruto de muito esforço. Em respeito a essa minha longa trajetória, chame-me de Texto, por favor. Com T maiúsculo, embora isso seja contra a gramática. Faça de conta que Texto é um nome próprio, como João, Beatriz, Mariana... Se eu fosse somente papel, até que eu não choraria por estar assim tão desprezado...

– Desprezado!? O que aconteceu com você?

O TEXTO – Uma criança estava me lendo, com muita atenção. Na primeira leitura, não entendeu muito e quis começar a ler de novo. Aí chegou um coleguinha e a chamou para ver fotografias e brincar com o computador.

– Mas isso é normal! Crianças gostam de fotos e de computador.

O TEXTO – Tudo bem, mas não precisava me embolar e jogar num canto.

– Você é melhor que fotografias e computador?

O TEXTO – Muito melhor! Tenho mais experiência. Existo há muito mais tempo. Antes, muito antes do papel, eu já existia. As professoras sabem explicar como era isso. E eu, desde a antiguidade, trago conhecimento para todos que me leem, mais até que o computador, porque eu acho que as pessoas que viveram antigamente liam e sabiam mais que os viciados nesse bichinho eletrônico de hoje.

– Mas o que você tem de melhor que eles, a fotografia e o computador?

O TEXTO – Na fotografia você vê tudo. No texto, você pode ver uma parte e imaginar outras. Você viaja, como a galera costuma dizer. É muito mais legal! No computador, tudo já está fácil demais, mastigado, não precisa de muito esforço... nem de imaginação.

– Mas as crianças e as pessoas hoje não querem mesmo se esforçar, não é? Ler é mais difícil, não é?

O TEXTO – Tudo que é bom exige esforço, dedicação, tempo, amor, cuidado. Dificilmente a gente entende um texto da primeira vez. Também não fazemos um amigo da primeira vez que falamos um oi pra ele. Queremos conversar mais, perguntar algumas coisas, conviver com a pessoa. E aí passamos a gostar.

– Então temos que ser, tipo assim, amigos do texto?...

O TEXTO – Isso mesmo! Só conhecemos as pessoas de quem somos amigos. Só conhecemos bem o texto com o qual passamos duas, três ou mais leituras. Não é amor à primeira vista, como nos filmes de Hollywood. Temos que pegar gosto pela leitura aos poucos.

– O que você acha das pessoas que estão na escola e não gostam de ler?

O TEXTO – Elas não estão na escola. Ou seja, a cabeça delas não está. Elas somente vão à escola. Só com o corpo. Mas o coração está longe do ensino e dos livros. Escola é lugar de leitura, e quem estuda direito se torna um leitor, de tudo: da Bíblia Sagrada, de revista, de gibi, de jornal, de livro, de poesia, de olhar, de outdoor. Até de bula de remédio, com aquela letrinha pequena ridícula, pra descobrir quais as contraindicações e quais os efeitos colaterais. Viu como eu sou entendido? Acho que sou papel reciclado e já fui bula no passado. Até rimou!

Outdoor!? Aí você tá me zoando. “Efeitos colaterais”... Ufa! Não venha dar uma de gostosão, Sr. Texto.

O TEXTO – É: outdoor, aquela propaganda grandona que a gente vê nas ruas.

– Por que a gente não faz um outdoor pra fazer propaganda dos textos, de todos os tipos de textos? Menos bula de remédio.

O TEXTO – Não precisa, meu amigo. É só as crianças, na escola e em casa, passarem a gostar mais de mim, me tratarem melhor. Quando elas aprenderem a gostar de mim, seus coleguinhas também gostarão, receberão livros de presente nos aniversários, a professora ficará feliz, a gente aprenderá melhor todas as matérias. E até o país será mais desenvolvido.

– Até o país vai melhorar? Deixa o Lula saber disso...

O TEXTO – É: “um país se faz com homens e livros”, disse um escritor bom e famoso, Monteiro Lobato, autor do Sítio do Picapau Amarelo.

– Isso mesmo! Sem livros e sem pessoas que gostem de ler esses livros o país não vai pra frente.

O TEXTO – Demorô! Quem quiser ver o Brasil melhor no futuro tem que começar a ler mais, a gostar de ler; e ler pelo menos três vezes cada texto. A primeira vez se parece com falar um oi; na segunda vez, a gente marca aquilo que não entendeu e procura saber no dicionário, que é o maior amigo do texto, depois dos leitores, é claro; na terceira, aí sim, é que entendemos, ou começamos a entender...

– E quando a gente vai começar isso de ler mais e de ler três vezes?

O TEXTO – Acho que é agora.

– Demorô!

O TEXTO – A gente estava falando do Brasil e você falou do nosso presidente. Infelizmente, apesar de ter lá suas qualidades, parece que ele não lê muito... Mas tudo de bom acontece no governo dele. Já reparou isso? Eta sujeito de sorte! Quem sabe, com a nossa ajuda, daqui a uns dias ele estará falando por aí: “Nunca antes na história deste país as crianças brasileiras leram tanto”. Cada um que começar a ler – ou que passar a ler mais – é um tijolinho na construção de um grande país: um tijolinho do saber e da cidadania, mais importante que o tijolinho de barro, a areia e o cimento.

***********************

Nesse ponto de nossa conversa (ou do meu sonho), o papel, que havia parado de chorar há um bom tempo pra conversar comigo, voltou às lágrimas. Achou “irado” – como dizem as crianças – e também emocionante – como falam os mais velhos – alguém lhe dar atenção. Foi uma choradeira brava, barulhenta. Acordei.

É... agora não fui somente eu que tive um sonho maluco, de ver um papel embolado chorando. O papel, que pediu para ser chamado de Texto (com T maiúsculo), também começou a sonhar que as crianças, começando com os alunos que estão lendo isto, vão dar mais valor a ele. E, lendo mais, vão construir uma escola, uma cidade e um país bem melhores.

(2008)

Nenhum comentário:

Postar um comentário