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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

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terça-feira, 12 de outubro de 2010

Meninice


"Há um menino, há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presente
O sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão" (Fernando Brant)

Na infância deixei a magreza, as pernas tortas, os dentes pra fora, um pesadelo recorrente em que era atropelado pelo pedal frenético de uma máquina de costura.

Na infância deixei a Rua da Paciência e uma cidade de outras ladeiras íngremes. Tornei-me cidadão de um lugar com muito mais gente e muito mais aclives.

Na infância deixei a taquicardia do amor platônico, as férias na roça, a expectativa da Vemaguete de meu pai – que nunca chegou –, o medo da morte precoce, algumas pouquíssimas composições musicais de qualidade pra lá de duvidosa.

Na infância deixei o prazer inexplicável de andar um pouco mais. Somente para garantir a primeira e individual cadeirinha do ônibus, quase uma conquista. Deixei a obrigação de ser muito bom nos estudos e o sonho de ter um Corcel. Nunca me contentei com Fusca.

Na infância deixei uma cisma, hoje uma convicção: sou complicado, contraditório, teimoso, neurastênico, um poço de aparente fleuma. Às vezes faço graça para disfarçar que quero mesmo é fazer drama.

Na infância deixei as peladas de rua, as brincadeiras no quintal com o Paulinho, o primeiro radinho de pilha, as orações para o Cruzeiro vencer, o único barulho de foguete lá em casa, após a final da Copa de 70. O radinho era Philips. Meu futebol, ao contrário, era péssimo.

Na infância deixei a sentença de Marisa: “Pedro, o solitário”. Deixei os livros de Monteiro Lobato, o Tesouro da Juventude, os episódios de Perdidos no espaço, uma isolada e terrível crise de bronquite. Quase me privou destas linhas e me fez compreender o que minha mãe passava. Não somente as tempestades a faziam sofrer. Deixei também, na infância, a tentativa de manipular meus irmãos com métodos quase terroristas.

Na infância deixei o gosto do Frumelo, do pirulito Campeão e do Guaraná Alterosa. Ele só aparecia, racionadíssimo, aos domingos. Deixei dois pedaços de caminho – que cruzavam a Esplanada, a Pompeia e um pouquinho do Paraíso. Deixei retratos que vão perdendo as cores ou ganhando o amarelo. Estão por aí a testemunhar que fui eu mesmo.

Na infância deixei a primeira parte de minha coleção de translações e o cálculo de minha idade no fim do mundo: 37. Aconteceu o inesperado: não somente o mundo não acabou, como entrei naquele 2000 com apenas 36 anos. Um de lucro, pois somente em junho completaria meus outonos da madurez.

Na infância deixei, entre tantas coisas de valor, minha música favorita: A pobreza, cantada por um certo Leno. O Youtube a trouxe de volta, para deixar clara a evolução de meus gostos. Ouvia Rádio Atalaia, vendia picolé e alface na rua. Não tinha telefone. Talvez nem futuro. Era, de fato, a pobreza. Mas só me fez bem. Como estas recordações que não me deixam.

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