Pesquisar neste blog

Quem sou eu

Minha foto
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

Tradução/Translation

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Sobre as crianças que não existem mais

No coração, sempre fui um menino. Percebo com esse olhar miúdo uma realidade que se agiganta diante de mim: enquanto fazia envelhecer minha casca, o tempo foi tirando das crianças, minhas companheiras, um tantão de coisas boas.

Primeiro, tirou a inocência. Hoje um garotinho de seis ou sete anos já detém um arsenal de sujeiras verbais de fazer inveja a velhos boêmios. E uma menina de nove ou dez anos, não raramente, se veste de uma maneira que seria tida como ousada, há umas três ou quatro décadas, para alguém do mesmo sexo, do dobro da idade e da metade do juízo.


Depois, o tempo tirou das crianças os quintais e as ruas. Subir em árvores, ter os pés descalços no chão, garimpar uma improvável goiaba sem bicho, crescer os olhos na manga rosa ou na jabuticaba do vizinho, concorrer com os raros automóveis nas peladas de rua da periferia... Soltar papagaio – mesmo perto da rede elétrica –, pilotar um carrinho de rolimã, andar na enxurrada, apertar a campainha do vizinho e sair correndo eram travessuras, perigos ou desafios que nenhum Nintendo ou Playstation consegue reproduzir.


O tempo passou mais um pouco e tirou das crianças a convivência com os vizinhos. Os amigos e as primeiras paixões não eram cultivados por e-mail, MSN, Orkut ou Facebook. Estavam muito próximos, a poucas casas de distância ou na escola.


Por falar em escola, o tempo tirou também das crianças o encanto e a autoridade dela. Hoje se aprende precocemente tanta coisa – boa e ruim –, convive-se com tanta informação, sofre-se tanto com as notícias e com a overdose de TV. Tornou-se risível a primeira professora, antiga “tia”, apresentar a letra inicial do nome, dizer que verde é mistura de azul e amarelo, que o mundo é redondo e que não se deve dar confiança a estranhos. Quem é o “estranho”? Às vezes, o próprio morador da porta ao lado.


Ainda no campo do ensino, insistir no respeito e honra aos mais velhos – sobretudo pais e professores – é dar murro em ponta de faca. Nas novelinhas do final da tarde, frequentemente, os protagonistas praticam o contrário. Com a tolerância, o acompanhamento e até o aplauso dos genitores do lado de cá da tela.


O tempo tirou, ainda, das crianças o senso de dever e ética. Hoje os pequeninos só têm direitos. Trabalhar, mesmo em tarefas domésticas, para muitos “educadores” e “psicólogos”, é altamente censurável. Uma palmada educativa após um eventual furto de dinheiro de casa é vista pelos modernosos com mais repugnância que o próprio ensaio para a criminalidade.


Fui surpreendido recentemente com a notícia de que as filhas do presidente Obama são instruídas a arrumar seus próprios quartos. Que bom! O meu, se dependesse de mim, seria uma lástima. Em compensação, já vendi picolé e alface na rua, já lavei muita louça, já limpei muito banheiro, varri quilômetros de passeio. Isso não me fez mal algum. Pelo contrário. Eu era magro.


Ora, direis: muitos de minha geração e das anteriores foram vítimas do autoritarismo parental, de verdadeiras surras, de extremo de rigor na criação e de outros equívocos cometidos por pais e mães que se sentiam donos dos pirralhos e da verdade. Ou que não sentiam nada. Os excessos do passado, no entanto, não justificam o afrouxamento do presente. Os pais de hoje não soubemos construir o meio-termo, não prezamos a razoabilidade, não aprendemos a dizer não, ainda que com lágrimas. Os passeios aos shoppings, ensinando-nos a ter até ao fastio, tentam substituir o convívio de amor, sinônimo de serviço, zelo, partilha, comunhão e cuidado.


Neste ponto, mesmo o leitor desatento perceberá: fui injusto com o tempo. Quem levou das crianças a inocência, os quintais e as ruas, a convivência com os “estranhos”, o encanto e a autoridade da escola e o senso de dever e ética? Não foi Chronos, conquanto se trate de um deus que mais retira que acrescenta. Não foi nenhum ditador abominável, tampouco elas próprias.


Dia desses buzinei, sem raiva, para um menino de aparentes doze ou treze anos. Estava ele brincando, como antigamente, no meio de uma rua de razoável movimento. Em vez de sentir-se advertido (ou até agradecido, em minha visão romântica), respondeu-me com um gesto obsceno. No passado de menos carros e menos maldade, essa não seria a reação provável. Senti-me ofendido e, como educador, também frustrado. Pensei em voltar com o carro, descer e conversar com ele. Cheguei a diminuir a velocidade, mas recuei diante da grande possibilidade de o próprio lar ter sido a escola da indelicadeza. Sendo, provavelmente, assim, talvez só reste lamentar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário