Belo Horizonte. Era dia de greve no transporte coletivo. O rapaz, de dezessete anos, estava há 40 minutos num ponto de ônibus movimentado. Mas não passava nenhum. Uma a uma, as pessoas iam saindo. Pegavam um táxi, começavam a caminhar ou ligavam para alguém buscá-las numa lanchonete próxima. Ali poderiam beber, até passar a raiva, um suco de maracujá, um refrigerante, uma água. O calor era terrível.
Completada uma hora de espera, em lance de extrema irritação, o rapaz, único remanescente no ponto, bateu propositadamente a testa no poste com alguma força. Ficou meio tonto, a vista escureceu. Quase caiu no passeio.
Recobrados os sentidos, em instantes a temperatura amenizou. Passou um ônibus muito antigo, daqueles com frente destacada, chamados de jardineira. Hoje só se veem nas imagens do Google. O destino indicava simplesmente “passado”. O jovem pagou pra ver: entrou. Lá dentro encontravam-se apenas o motorista, de gravata e boné, o trocador, de azul, e uma moça, de parar o trânsito, sentada na última poltrona.
A beleza da adolescente, embora fosse miúda, preenchia todo o lotação. Aparentava quinze ou dezesseis primaveras. Trajava uma roupa sóbria, impecável, parecendo uniforme. Olhava apaixonadamente a paisagem.
O rapaz sentou-se ao lado dela, enquanto o ônibus seguia lento. O motorista buzinava de vez em quando, não para alertar ou incomodar ninguém, mas cumprimentando os transeuntes, que retribuíam com um sorriso. O passageiro foi logo puxando assunto:
- E aí? Manero?
- Tudo bem? Bom conhecer você. Como se chama?
- O que cê tá fragrano aí na janela?
- O quê?
- Por que cê tanto olha a janela, véi?
- Aqui dentro só tinha eu, o seu Antônio e o cobrador, o Chiquinho. Depois de bater um papo rápido com ele, não havia com quem conversar...
- Agora tem, meu. Demorô!
- Meu?!
- Tá indo pra escola ou tá de bobera?
- Indo pra escola...
- Lá a galera, tipo assim, deve querê te pegá direto, num é?
- Não. Só meu pai me pega no final da aula.
- Tá me tirano?!
- Não compreendo a sua língua. Desculpe-me, com licença...
A moça pega uma carta. Começa a ler. O rapaz não aguenta mais de trinta segundos calado. Volta a abordá-la:
- Que parada é essa, meu?
- Aqui é a parada da Praça da Liberdade. Linda, não é?
- Cê tá de sacanage... O que é isso que a patricinha tá leno?
- Uma carta do meu namorado. Foi colocada no correio semana passada. Chegou hoje. Mais depressa que da outra vez. Ele está morando no Amazonas.
- Não tem orkut lá? Que frescura é essa de carta?
- Orkut?! Frescura?! Com licença, quero ler minha cartinha sossegada.
A moça, poucos segundos depois, começa a chorar. Mas tem o semblante feliz. Muito feliz. Beija o papel que ela perfumara, coloca-o junto ao peito. Volta a olhar pela janela. Logo em seguida, o celular do rapaz toca, com som alto de funk pornográfico. Ele, propositadamente, deixa a música tocar por quase um minuto. A moça toma um susto enorme. Quase pula da poltrona. Finalmente, o rapaz atende à ligação que o leva de volta a sua época:
- Fala, véi. Tô num balaio esquisito aqui. E tem carne nova no pedaço. Ela fala mó estranho, meu, tipo assim sua avó, fragra? Tenso! Mas eu tô levano uma ideia com a mina, daqui a uns dias tô pegano essa tamém...
A moça não entendeu nada. Ainda bem. Nem se interessou em saber sobre aquele aparelho inconveniente e futurista. O rapaz, por sua vez, ainda falando ao celular, desce do ônibus. Não o aproveitou nem um pouco. Imediatamente após saltar, olha a sua volta e... nada de coletivo. Simplesmente desaparecera. Rápido demais.
Conquanto possamos desconfiar de lições de um passeio improvável e efêmero, não se tratava apenas de outro tempo. Era outra linguagem, outro mundo. Havia moças e janelas. Havia sonhos escondidos em cartas. A pressa, sem pestanejar, cedia lugar à delicadeza. Um rapaz tão tosco não poderia mesmo sobreviver a mais de dois ou três quilômetros naqueles dias. Sequer despediu-se da garota. Muito menos valorizou o fato de ser ela bem diferente das que, digamos, “pegava”. Não lhe disse um “muito prazer”. Nem soube seu nome, Beatriz.
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