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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

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segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Marina e o teleférico


Ao contrário de Giovanna, que tem peito até pra voar de ultraleve pilotado por rei momo em quarta-feira de cinzas chuvosa, Marina herdou alguns de meus medos, meu jeito, uma boa dose de meu perfil físico e psicológico.

Minha primeira filha, portanto, é cismada que um tanto de coisa pode dar errado, ainda sem saber que na verdade pode mesmo. E isso não é pessimismo, é apenas um jeito de ver o mundo como alguém que só enxerga subidas fortes em Pitangui, cidade cheia também de declives acentuados.

Não pensem, porém, que Marina é quase triste como eu, que lhe transmiti os temores. Tem um medo mal-ensinado pelo professor que a gerou. Aprendeu com outros seres a alegria, a graça do nome, a vaidade discreta, a perspicácia e uma coragenzinha de vez em quando. Teve boas influências também.

Andar de teleférico, no entender do pai de Marina, é um dos grandes desafios da vida. Está cientificamente provado que aquilo quase não cai, entretanto pode parar, o que seria um problema mais duradouro. Eu, por exemplo, não descarto a possibilidade remotíssima de a parafernália que move as cadeirinhas suspensas emperrar justamente comigo, que só entro numa, em média, uma vez por década. Já pensaram naquele troço parado nas alturas e uma voz de megafone avisando: “Calma! Nada de pânico. O helicóptero de resgate chega em algumas horas”. E a minha pressão?

Pois é. Para surpresa deste escritor que quer ter sempre os pés no chão, depois de muitos estímulos, inclusive financeiros, Marina entrou num negócio daqueles. Eu, ao melhor estilo “faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”, a convencera, após várias ladainhas, de que não havia perigo algum, que bobagem é essa? Lá foi ela às alturas, gostando de viver perigosamente, e eu embaixo, feliz, quase realizado pelo fato de o meu departamento de marketing ter sido mais eficiente que o setor de produção.

Registro, em respeito ao princípio constitucional do contraditório, que, algumas semanas depois da vitória supostamente minha, Idalina reivindicou a autoria da façanha. Na versão uxória, a mãe é que teria convencido a filha de que os perigos da existência são outros. Para os pósteros fica esta versão impressa, intermediária, da autoria duvidosa ou da autoria dividida.

O fato é que Marina voltou inteira, o teleférico não ficou imóvel e suponho que nada será como antes. Porque, na verdade, talvez o meu medo maior seja de altura, o que os especialistas chamam de acrofobia, e ela não tenha pegado desse vírus. No avião, ela olha através da janela, o que muitas vezes abomino, eu que também tenho uma contraditória fascinação aliada a um certo receio de aeronaves. Estas, no entanto, têm a vantagem de ter janelinhas, que podem ser fechadas. Além disso, aviões jamais param no ar, ao contrário de beija-flor, do teleférico estragado de meus pesadelos e de Dadá Maravilha, o divertido ex-jogador de futebol que se atribui essa impossibilidade física.

Concluindo, há muitas vantagens de Marina em relação a mim. Entre essas, talvez ela tenha uma janelinha no coração que só a deixe enxergar o medo que lhe seja conveniente.

(2006)

Um comentário:

  1. Vim direto para esta crônica. Agora, voltei para deixar um comentário. Achei muito bonita - é difícil de ler um texto onde um pai escreve sobre sua filha. Parabéns!

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