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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Os cacos


“Contos da água e do fogo,
Cacos de vida no chão,
Cartas do sonho do povo
E o coração do cantor.
Vida e mais vida ou ferida,
Chuva, outono ou mar,
Carvão e giz, abrigo,
Gesto molhado no olhar...
Calor, que invade, arde, queima,
Encoraja, amor,
Que invade, arde, carece de cantar.”
(Tunai/Milton Nascimento)

Um dia o copo caiu da mesa. Partiu-se em inúmeros cacos, nunca vi tantos. Havia, é óbvio, os cacos médios, os pequenos e os minúsculos. Estes últimos dão mais trabalho.

Nossos problemas também são assim: os médios, os pequenos e os minúsculos. Os grandes não são nossos, são de Deus. Assim como cacos grandes não existem, do contrário não seriam cacos. Por exemplo, se viramos cacos e temos que voltar a ser copos, prontos a matar a sede de humanidade dos outros, trata-se de uma questão grave, totalmente fora do nosso alcance. É preciso chamar o Criador de homens e mulheres, oleiro-mor, que pode reparar, juntar, colar ou refazer o vaso, o copo, e colocar água dentro. Aliás, Ele é que inventou também a água, coisa boa demais, razão de ser do copo.

Mas voltando aos cacos e problemas, os médios não são assim tão preocupantes. Estão ali, visíveis, prontos a fazer um improvável corte, já que os enxergamos e respeitamos. Caco médio a gente vê logo e cata até com a mão. Problema é a mesma coisa: se fácil de detectar e relevante, a gente logo busca a solução. O caco vai para o lixo sem fazer estrago.

Quanto aos cacos pequenos, nem sempre a gente vê e muitos deles nos ferem. Vários desses têm uma ponta teimosa, que só quebra depois de cortar. E às vezes a danada da ponta quer até ficar dentro da gente. Têm que ser juntados com cuidado e apanhados com a pá. O copo que quebrou tinha muitos dessa, digamos, categoria.

Aí deparei com os cacos minúsculos, centenas, milhares, sei lá quantos. Terríveis! Esses têm que ser varridos cuidadosamente, apanhados talvez com um pano e, mesmo assim, podem sobrar alguns. São praticamente moídos, matéria prima de cerol, cortam, espetam, ferem, fazem sangrar, são particularmente traiçoeiros.

Nossos problemas minúsculos são assim: ninguém vê, mas cada copo sabe da sua vida. São por causa deles, minúsculos, que mais brigamos, ferimos e somos feridos. Eles são em maior número e – o pior – para fazer a reconstituição integral do copo, ainda que simbólica, é preciso identificar cada um. Às vezes há uns cinco ou dez escondidos estrategicamente no buraco minúsculo do rejunte entre as cerâmicas do piso e da parede. Ou entre os granitos, no caso de cacos mais chiques. Mas no coração não há diferenças – a gente chama de recônditos, palavra bonita, os buraquinhos onde guardamos cacos, feridas, mágoas, filigranas, amores e boas lembranças.

No dia em que o copo – o último deles – caiu e quase esfarelou, eu mesmo, que costumo terceirizar a complicada tarefa de catar e juntar cacos, me dei esse trabalho, como deveria ter feito com os outros copos e xícaras despedaçados pela minha estabanação. Essa última e estranha palavra antes do ponto, que tanto ouvi de D. Júlia e outros pitanguienses, por sinal, não existe. Aliás, não existia, porque o editor de texto que a avermelhou e o dicionário que a não registra estão pensando o quê?

É claro, eles não pensam, assim como os estabanados em geral. Mas no dia, ou melhor, na madrugada em que juntei os cacos do copo, durante longos 20 ou 30 minutos, eu penei e pensei bastante. Aprendi, em silêncio, em posição servil, com os cacos. E dormi menos partido.

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