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Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

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terça-feira, 17 de novembro de 2009

Minhas muitas sedes

(texto de RICARDO GONDIM)

Quero embriagar-me de ternura. Quero viver impregnado de bondade. Anseio demolir os muros que guardam meu isolamento. Busco soterrar os fossos do meu egocentrismo. Sonho poder ouvir um novo Efatá dos lábios de Jesus. Só ele desobstruirá meus ouvidos da surdez que me impede de ouvir o essencial.

Tenho sede de poesia. Os rígidos compêndios acadêmicos tentam mirrar o músculo divino que palpita em meu peito. Neste entardecer da vida descobri que a homogeneidade mental enlouquece. Ao lado de G. K. Chesterton (1874-1936) repito que a “imaginação não produz a loucura; o que produz a loucura é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem. A poesia é sã porque flutua, facilmente, num mar infinito; a razão procura cruzar o mar infinito para, assim, torná-lo finito”. Tardiamente prometo a mim mesmo que lerei as Escrituras saboreando sua poesia divina. Não tentarei mais dissecar cientificamente suas verdades. Desisto de minha ambição de saber todos os mistérios. Procurar entender todas as coisas leva à exaustão. Os poetas almejam ir aonde nascem as cores dos arco-íris para vestir a existência de alegria. Antecipam caminhar sobre nuvens virgens e contemplar um mundo em que santos e vilões, heróis e tímidos, damas e prostitutas se abraçam numa festa de infinita felicidade. Abandono a meta de querer dar nexo ao céu. Prefiro conversar com as crianças sobre o reino que lhes foi prometido.

Tenho sede de humanidade. Vou carregar um termômetro para medir o grau de meu altruísmo. Sempre que me comover com os sofrimentos dos necessitados e defender a dignidade dos esquecidos, saberei o índice de humanidade que alcancei. Confesso que estive bem morno. Empolguei-me com as bravatas heróicas de personagens patéticos e permiti enfeitiçar-me pela riqueza que a ferrugem corrói. Copiarei Mateus 25 nas palmas de minhas mãos para jamais esquecer que ninguém entrará no céu sem uma carta de recomendação de um pobre. Sei que o contrário de humanidade não é simples selvageria, mas inaptidão em reconhecer a imagem de Deus no próximo. Diante dos horrores da miséria, quem não consegue transformar sua sensibilidade em ações não possui o mesmo Espírito de Jesus Cristo. Abraço meu mandato de ser empático (em: em, dentro; pathos: sentimento) com os que sofrem. Não permitirei que o cinismo pós-moderno abafe o choro que ressoa dos porões escuros dos navios lotados de emigrantes africanos. Não procurarei culpar os já desgraçados milhões de nordestinos que vivem nos sertões brasileiros sem chuva. Tentarei caminhar ao lado dos anônimos pregoeiros da justiça.

Tenho sede de um amor humilde. Devo aceitar a mim mesmo e aos meus limites. Não quero tornar-me algoz de minhas imperfeições. Vou procurar aliar-me à graça para ser terno com minha alma. Também preciso acolher os outros por aquilo que são e não pelo que eu gostaria que fossem. Diante da maldade humana, muitas vezes, hesito entre a força e o amor humilde. Decido continuar recorrendo ao amor doce e delicado de Deus. Só os verdadeiramente frágeis herdarão a terra. A fraqueza do amor é a força mais formidável do universo. Portanto, comungo com o espírito da não-violência, que inspirou tantos dos meus heróis. Farei da paz pedra de apoio de minha vocação humana. Relembrarei à minha alma que Jesus de Nazaré preferiu a cruz e não um reino grandioso. Sua morte transformou o paradoxo da fraqueza do Deus encarnado numa influência avassaladora. Aprenderei a me despir da arrogância que vem do poder e me vestir do poder que vem da mansidão.

Tenho sede de companhia. Quero cantar mais vezes que “amigo é coisa para se guardar, debaixo de sete chaves, dentro do coração”. Desejo ser o companheiro que não tenta transformar ninguém em vassalo, que não caminha com as máscaras dos mitos idealizados e que nada promete, senão continuar sendo ele mesmo. Provérbios lembra que “em todo tempo ama o amigo, e na angústia se faz o irmão” (17.17). Mais que amigo, quero tornar-me irmão. Recordo que a amizade original e perfeita pertence à Trindade, que convive eternamente preferindo o outro. Reconheço que os seres humanos foram criados com a eternidade em seus corações. Por isso, respeitarei a singularidade de cada pessoa, para amar melhor.

São muitas as minhas sedes. Mas ambiciono mesmo transformar-me numa pessoa mais parecida comigo. Guerreio para desmascarar o impostor que habita dentro de mim e que tenta fazer-me um estranho diante do espelho. Teimosamente rejeito as armaduras emprestadas. Ousarei apresentar-me no grande banquete com os mesmos trajes — respingados com o sangue do Cordeiro — com que lutei e peregrinei nas estradas da vida. Admito sentir saudade de minha irreverência juvenil, nascida de um vento selvagem. Aquele Pentecostes cearense ainda pode sustentar meu vôo rumo ao Paraíso.

O Evangelho promete que Jesus Cristo sacia a sede de qualquer um.

– Assim, Senhor, venho pedir-te: não permitas que eu permaneça arfando como a corça, sem achar os ribeiros da plenitude. Antes que se rompa o fio de prata, dá-me de beber, e do meu interior fluirão rios de água viva.

Soli Deo Gloria.

- publicado na revista ULTIMATO nº 295, julho/agosto-2005 -

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