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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Fui promovido a escritor de quinta, quinta colocação em minha rua, mas também escrevo às quartas, terças etc.

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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Memórias de Undocês


























"Tudo que vai

Deixa o gosto,
Deixa as fotos.
Quanto tempo faz!
Deixa os dedos,
Deixa a memória.
Eu nem me lembro mais...”
(Dado Villa-Lobos/Alvin L./
Toni Platão)


(texto dedicado a Bartolomeu Campos Queirós)

Trago para estas linhas o que sobrou na memória dos primeiros anos.

flashes embassados de algumas voltas no jipe do Zé Ulisses, mas a primeira cena de que me lembro com detalhes é da noite em que meu pai viajante chegou com um velocípede de dois assentos.

Após a demorada montagem, eu e o Eduardo – que dormíamos cedo – talvez tenhamos adentrado um desconhecido pedaço da madrugada. Aquela maravilha nos levou, em círculos, em horas, de lugar nenhum para nenhum lugar numa sala que se tornou de sonho.

O piso era suspenso, de madeira espessa e rústica. O brinquedinho era quase uma extravagância para uma família pobre – e veio conosco para Belo Horizonte.

Para Belo Horizonte veio também a lembrança assustada de um Cristo ensanguentado na Capelinha do Bom Jesus, bem perto de minha casa, que ficava na Rua da Paciência – uma das infindáveis subidas de Pitangui. Veio, ainda, uma recordação muito viva do dia em que o Eduardo, infante bem acima da média na aparência, foi clicado em preto-e-branco no Foto Camargos.

Mudou-se para a cidade grande uma criança de quatro anos que sequer aprendera a ser caipira. Hoje somente algumas fotos amareladas permitem maior esforço de recordação, quase sempre inútil, daquele tempo bom.

Sei que morava ao lado do Carlos Alberto, meu primo, mas dele quase não me lembro no interior. Logo após eu chegar a Belo Horizonte, no entanto, ele, o Carô – que viera antes para a Capital – quase repete agora aos meus ouvidos suas palavras do final de 1967:

– Para qual time você torce?
– O quê?
– Pra morar aqui, você tem que escolher: Cruzeiro, Atlético ou América.
– O que é isso?
– Times de futebol. Escolha um... Agora!
– Pode ser Atlético.

Falei pra ficar livre. Os leitores não sabiam: o Galo foi meu primeiro time, felizmente por poucos dias. Vim a saber que existia esse bicho nos gramados e que papai era atleticano somente em BH. E quando obtive as primeiras informações consistentes sobre o esporte bretão, despontava para a glória o Cruzeiro de Raul, Piazza, Zé Carlos, Tostão, Natal e Dirceu Lopes, uma das maiores equipes da história do futebol brasileiro. Não resisti à onda azul, em que até hoje me afogo.

Nesse ínterim o homem chegava à lua – ainda não sei se a inicial lunar é maiúscula ou minúscula – e o Brasil sagrava-se tricampeão do mundo no México, no dia em que me lembro do talvez único foguete soltado por meu pai.

Em minha infância – e antes dela, como observa minha mãe –, as fotografias eram somente registro para os pósteros. Eram raríssimos risos escancarados ou mesmo sorrisos. A gente até tinha o direito de ser feliz, mas ninguém podia ficar sabendo.

Hoje, ao contrário, a fotografia, muitíssimo mais barata e acessível, é pura curtição: principalmente crianças, adolescentes e jovens fazem caras e bocas, trocam de roupa várias vezes, se autorretratam, riem demais – quase chega a sair o som na foto. Minha mãe não tem simpatia por essa mudança tão drástica.

Por falar nela, D. Júlia, reza a lenda ter sido muito severa. Disciplinou-nos muito bem, atribuindo, com sabedoria, a cada filho algumas obrigações domésticas. E não deixou que a gente fosse enjoado pra comer. Escolhia-se somente uma abominável parte do menu, no meu caso, o jiló. O resto vinha guela abaixo, com cara boa ou cara ruim. Naquele tempo estava começando a começar – isso mesmo: começando a começar – a transição: foram duas ou três décadas entre o tempo das crianças que obedeciam aos pais e o das crianças que neles mandam.

O batidão lá em casa era assim: quando um afazer doméstico, tipo comprar pão, não era expressamente atribuído a algum dos quatro, a comandante dizia:

– Undocês (leia-se “um de vocês”) vai comprar o pão.

E eu caía na bobagem de perguntar:

– Quem?

Vinha a sentença irrecorrível:

– Pode ser você, Pedro.

Por isso, depois de milhares dessas perguntas idiotas que eu, também idiota, fazia – e recebia sempre a mesma resposta –, apelidei-me de Undocês.

Eu era muito nervoso e praticava algo próximo do terrorismo tentando dominar meus irmãos: o Eduardo, que já apresentei, o Giovanni e a Raquel. Quando eu tinha algum trocado – já vendi alface, picolé, rifa etc. (principalmente o etc.) –, subornava-os para “disgaiá”, ou, em português culto, desgalhar. Foi um neologismo que criamos com o significado de “ir correndo comprar algo, em geral guloseimas”.

Minhas necessidades de “disgaio” (eis, no dialeto popular, o substantivo equivalente ao verbo inventado) estavam, assim, praticamente resolvidas. Os problemas de casa que demandavam traquejo superior ao de trocar uma lâmpada quase sempre eram solucionados gentilmente por alguém da amorosa família dos vizinhos José Barbosa e Maria Imaculada, em especial o Carlinhos. Minha mãe não sentia firmeza na gente – nem poderia sentir:

– Chama um menino da D. Maria.

Minha parca criatividade e minha habilidade zero manifestavam-se aí, na co-autoria de um verbo que nunca fez a menor falta ao léxico e na incapacidade – hoje superada – de instalar um chuveiro. Também vem de antanho a mania de levar desvantagem em tudo, ao contrário da famigerada propaganda do cigarro Vila Rica, protagonizada pelo jogador Gérson, da Seleção. Desse tempo ainda vêm meus primeiros e horrorosos passos na arte de escrever: uma poesia cometida aos sete ou oito anos continha mais ou menos isso:

“(...) Pitangui é pequena e singela,
Mas eu gosto muito dela”.

Pensando bem, não chega a ser tão detestável quanto a propaganda do Vila Rica ou o jiló. Contudo, se você conseguiu chegar até aqui neste texto, não posso me arriscar com mais algumas linhas. Seria mais temerário que perguntar “quem?” a minha boa mãe. O certo é que, como poeta e memorialista, pareço ter sido um excelente filho.

2 comentários:

  1. Pedrão,
    entusiasmei tanto com seu blog que tornei-me seu seguidor. Parabéns pela composição das imagens e texto. Pierre Lévy, filósofo da informática tem razão, estamos reinventando a escrita.
    Abraços,
    Herbert

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  2. Peter,
    Eu tb conheci o Cruzeiro dessa época, até então era Flamenguista roxa. A população de Cataguases não conhecia os times da capital. Torcíamos somente para os do Estado da Guanabara. Espero que o Francisco não fique sabendo,otherwise, você está perdido!
    bjs
    Adoro ler-te!

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