

Ele se assentava naquela velha mesa, na cabeceira mais próxima da televisão que não via. Próxima também do quarto de onde quase nunca se retirava. Talvez tenha ficado até o arredondamento do calendário milenar somente para ver se o mundo – que já acabara para ele – iria acabar mesmo para todos, como rezava a lenda no meu tempo de menino.
Nos primeiros dias deste ano, quero sentir o cheiro de Leite de Colônia em mim. E me lembrar dele: de sua vida difícil; de sua barba espessa e aparada; de sua labuta incansável, quando a mente lhe permitia; de suas madrugadas pontuais para comprar pão e fazer café; de seu envolvimento com minhas escolas, que fez os estudos relevantes para mim e para meus irmãos; de seu cantar recorrente de As pastorinhas – de Noel Rosa e João de Barro –, música lançada exatamente na época do nascimento de minha mãe.
Dele me lembro, também, dos “estouros”, dos cocões com que tentava pôr nossa cabeça no lugar, dos “espalhos”, como ele dizia – mesmo na hora da prece –, de sua mania eventual de perseguição, dizendo-se mal amado e mais mal abrigado que o Jerry. A vida, frequentemente, para ele era uma capação, substantivo com um significado diferente em Pitangui.
Não era verdade, é óbvio. Assim como não era certo, como cheguei a cogitar, que seus predominantes momentos de recolhimento, de fastio com tudo, de apego, em posição fetal, à cama e aos cobertores o tivessem levado a privar-se dos sentimentos. Foi pior: ele os mantinha, ele era amado, ele nos amava, mas isso raramente movia seus lábios retorcidos precocemente pelo tempo.
Além de todas as perdas e danos, ele nem chegou a ter sua Vemaguete tão sonhada, nunca teve uma pasta de trabalho leve, nunca teve um tratamento médico bem-sucedido por anos. Ele não teve sequer boa parte dos anos de sua existência.
Restam-lhe – agora que não pode ter mais nada – quatro rebentos com quem, certamente, sonhara desde moço e cujas estradas, depois, pavimentou. As dele remanescem íngremes e empoeiradas, quase tenebrosas. As nossas são tapetes estendidos por seu esforço. Deixou-nos muitas lições de honra e disciplina; e algumas outras de vergonha pelos tropeços. Às vezes, gabava-se de ser quem não era. Em outras situações, sugeria merecer algum sofrimento por se achar pior que outros exemplares da raça. Até se lhe secarem os sonhos, até se lhe retirarem os extremos, até lhe faltarem as forças, até não conseguir dizer o que sentia.
Mas importa registrar aqui seu legado. Tecer, com a emoção empobrecida pelas palavras, um tributo desta semente órfã, lançada com esperança e regada com suor e lágrimas. Reconhecer as marcas dele em mim, não suportadas por estas linhas. Sem sua voz, sem seu beijo, sem seu cheiro, careço de algo. Sua doce estranheza é uma saudade sem cura. E a fragrância perdida talvez nada resolva: a falta que ele me faz somente ficará mais sensível, como meu coração hoje acordou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário